Como um fungo que vai se espalhando por um objeto até tomar toda a sua superfície, aos poucos as nossas histórias pessoais vão se sobrepondo à História factual.
Há o que chamamos de História, e há a vida privada. A História é montada a partir de relatos e fragmentos que indicam os fatos de um período x de tempo, dando sentido à uma série de eventos ligados a um contexto.
É lógico que essa História (a oficial, que está nos livros e museus) é uma síntese de centenas de milhares de histórias pessoais, as pequenas histórias que não perdem em nada pra vida de Nero ou pra corte real portuguesa. No entanto, não temos relatos fiéis dessa memória coletiva de pelo menos 150 anos atrás; nos restando apenas deduzir os fatos a partir dos vestígios deixados (é bom lembrar que grande parte das pessoas não sabia escrever, justificando nossa carência de relatos históricos).
Mas, e quando pelo menos 1/6 da população mundial tem condições de produzir relato histórico in loco, o que acontece?
Hoje, em qualquer ambiente com mais que 3 pessoas é possível notar a presença de gadgets documentando a História, do almoço à queda da “Bastilha” contemporânea. A história do dia-a-dia torna-se a História, que um belo dia não precisará mais dos livros pra ser contada. É da nossa fome por relações que nasce essa busca irrefreada pela documentação de absolutamente TUDO que nos acontece. Tudo pelo bem do social, que agora acontece virtualmente também. Esse parágrafo abaixo, do Tempo das Tribos, do Maffesoli, dá uma boa noção de como acontece esse fênomeno.
“Há momentos em que o indivíduo significa menos do que a comunidade na qual ele se inscreve. Da mesma forma, importa menos a grande história factual do que as histórias vividas no dia-a-dia, as situações imperceptíveis que, justamente, constituem a trama comunitária. Esses são os dois aspectos que me parecem caracterizar o significado do termo “proxemia”. Naturalmente, devemos estar atentos ao componente relacional da vida social. O homem em relação. Não apenas a relação interindividual, mas também a que me liga a um território, a uma cidade, a um meio ambiente natural que partilho com outros. Essas são as pequenas histórias do dia-a-dia: tempo que se cristaliza em espaço. A partir daí, a história de um lugar se torna história pessoal. Por sedimentação, tudo o que é insignificante – rituais, odores, ruídos, imagens, construções arquitetônicas – se transforma no que Nietzsche chamava de “diário figurativo”. Diário que nos ensina o que é preciso dizer, fazer, pensar, amar. Diário que nos ensina “que podemos viver aqui, já que vivemos aqui.” Dessa maneira se forma um “nós” que permite a cada um olhar “para além da efêmera e extravagante vida individual”, sentir-se “como o espírito da casa, da linhagem, da cidade”. Não podemos indicar melhor a mudança de ótica que me parece importante efetuar. Focalização diferente. O acento cairá sobre o que é comum a todos, sobre o que é feito para todos, mesmo que seja de maneira macroscópica. “A história que vem de baixo.”
Junto com “território”, “cidade” e “aqui”, eu acrescentaria a internet, o nosso “não-lugar” de convivência preferido atualmente. As relações virtuais, que nos desterritorializam (tanto faz se estou aqui ou ali pra que essa relação aconteça), e que de certo modo aceleram essa construção colaborativa da História. Da mesma forma que nos apegamos a lugares, começamos a nos apegar às ideias, aos conteúdos que circulam virtualmente. Ou seria um desapego?